
A linha das palmeiras define a fronteira entre o areal e o mar. Define, também, a linha entre chatear ou não chatear os turistas: entre a primeira fila de espreguiçadeiras e a dócil rebentação do mar do Caribe, naquela tira pequena de areia molhada, circulam pelotões inteiros de haitianos a tentar vender de tudo, desde o sol à lua, passando pela mãe, as irmãs, o dente de ouro de uma tia, uma ilha qualquer no Pacífico, um camião roubado à ONU, duas vacas sagradas, uma avestruz do Paquistão, um Cadillac que pertenceu a J.F. Keneddy mas só depois de morto, um vestido que pertenceu a Lady Gaga quando ainda era homem e uma galinha que é prima do coelho da Páscoa e põe ovos de chocolate. Lá pelo meio até dizem a verdade, que têm bonito artesanato para vender. O problema é que, como eles não podem, fisicamente, vender nada na praia, têm que convencer os turistas a ir visitar as suas barracas… perdão, superfícies comerciais, aglomeradas naqueles 170 centímetros de praia que não pertencem aos hotéis. Os estrangeiros que acabaram de chegar vão atrás deles, cheios de boa vontade, perdem 20 minutos, gastam 70 dólares e voltam com uma máscara de bambu que se parte toda, um berimbau que não toca, um íman que não agarra ao frigorífico e um pareo que debota assim que se lava.

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«Eh, pá! Este blogue é cruel como o caraças, não tem pena dos haitianos que ficaram sem nada desde o terramoto e até têm cólera e mais o raio que parta…»
Bom, se você, que está a tentar ler isto, leu a frase anterior e ela fez algum sentido dentro da sua cabeça, se calhar é melhor que eu lhe explique algumas coisas primeiro. Pode ser?
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Ponto um: os haitianos não têm pena deles próprios. «São seres revoltados por natureza, até os que têm uma vida aceitável e estão integrados no nosso país, com a sua casa, com a sua família, com o seu sustento, até esses são revoltados e conflituosos». Quem o diz é o Angel My Friend, de quem não tenho motivos para achar que o diz da boca para fora. O Angel é um rapaz dominicano educado, com estudos, com frequência em ensino qualificado universitário, com a ambição de se especializar em relações internacionais num intercâmbio qualquer na Europa. Nem sequer é como a maior parte dos dominicanos, que sonha um dia viver nos Estados Unidos, embora saiba perfeitamente que nunca vai pôr um pé fora daquela ilha. «Gostava de ter uma carreira e ficar lá por fora, ter uma família», diz, sem saber que na Europa as pessoas vivem encavalitadas umas nas outras, faz um frio de rachar, chove e neva, é tudo caro e ninguém vive contente. «A ambição do dominicano médio é ir para Miami. A ambição de um dominicano pobre é um dia poder fazer uma viagem fora do país. A ambição do haitiano é viver deste lado da ilha e armar zaragatas com toda a gente», acrescenta. Estima-se (não eu, que nunca soube estimar nada) que haja uns dois milhões de haitianos a viver na metade direita da ilha, que, para quem não sabe, se chama República Dominicana. Desses dois milhões, três estão ilegais. Mas são contabilizados para os quase dez milhões de habitantes do território. «Eles ficam com os cuidados básicos de saúde, com toda a assistência social, com tudo o que é dinheiro do governo para ajuda ao povo», diz o Angel My Friend, sem raiva, mas com o ressentimento natural de quem percebe que, para estar doente, tem que ter um seguro de saúde pago pelo patrão. A mãe e o pai, diz, não têm. Se ficam doentes, vão para a mesma fila dos haitianos. E ele não está a exagerar. Uma turista do hotel teve gripe, foi ao centro de saúde do hotel e teve que accionar o seu seguro de viagem, caso contrário a médica não a tratava. Uma embalagem com três cápsulas anti-gripais custou 23 dólares. O descongestionador nasal custou 30 dólares. A consulta custou 97 dólares mais 20 dólares da chamada telefónica para o seguro, que pagou tudo. A turista, no dia a seguir, já andava aos saltos dentro de água. «Se fosse um haitiano, ia para a fila das urgências até ser atendido. Mesmo que, quando fosse atendido, já nem sequer estivesse doente», sublinha o Angel My Friend.

Ponto dois: os haitianos não servem para nada e só estragam. Mas espalham doenças ou isso? «Não, nada disso», esclarece o Angel: «eles nem gostam de se misturar com os dominicanos. Mas eles arruínam-nos o país. O governo dominicano até lhes paga para determinadas coisas, e eles fazem tudo para estragar». Não fiquei muito convencido e pedi-lhe para detalhar. Então fiquei a saber que o governo dominicano paga, vamos imaginar, 350 pesos por semana a um haitiano para ele trabalhar nos sectores em que os dominicanos se recusam a trabalhar a 500 pesos por semana. «Eles vêm, fazem o que lhes pagam para fazer, mas de caminho destroem a habitação social em que os põem a dormir, cospem no chão do autocarro que os transporta, estragam comida de propósito, são eternamente revoltados», diz o Angel. [Em defesa dos haitianos, é importante dizer que aquilo a que o rapaz se refere como ‘habitação social’ qualifica-se como ‘barraca’ em qualquer sítio da Europa] O principal motivo pelo qual o governo dominicano contrata haitianos é porque nenhum dominicano quer esse trabalho de baixa qualificação que é cortar cana-de-açúcar. É por isso que os haitianos recebem uma licença especial de permanência durante o período de contratação, que pode ir de oito a vinte e quatro semanas, mas nunca é cumprido para lá das doze. «O que acontece», explica o Angel My Friend, «é que eles trabalham semanas suficientes para ganharem algum dinheiro e, assim que têm o suficiente, voltam para o Haiti, onde eles e a família se podem embebedar como lordes durante três meses, porque o dinheiro que levam daqui, lá, é uma fortuna». Mas isso são todos? Tem que haver excepções. «E há. Há os que trabalham até terem dinheiro suficiente para construírem uma barraca e se sustentarem por cá».

Preciso de trocar de cicerone e o Angel indicou-me um rapaz que sabe tudo sobre a ilha e fala tudo, espanhol, inglês, francês, alemão, italiano, caribenho e depressa. Eu, infelizmente, não percebo patavina de nada, só o entendo por gestos. Chama-se José [diz-se «Ró-Cé»]. José quê? Não faço a mínima ideia, porque o abecedário gestual é complicado de compreender, mas a partir de agora chamo-lhe José, O Tímido. Porque tímido é tudo o que ele não é. No início do périplo pela ilha, José disse tanta coisa que eu quase não consegui dispersar a atenção para olhar pela janela e ver a paisagem. Mas lá fiquei a saber que os talhos dominicanos penduram a carne cá fora. Para quê? «Ninguém aqui tem dinheiro para pagar grandes arcas frigoríficas ou a electricidade que ela custa, de maneira que a carne é posta a secar ao ar [e às moscas, acrescento eu], depois de ser devidamente salgada para se conservar como deve ser». A parte de não quererem gastar electricidade eu até percebo, porque assim os dominicanos preferem guardar a luz para ouvir os discos do Juan Luis Guerra e jogar dominó noite dentro. Mas a parte de deixarem a carne na rua… porque ela se conserva melhor, é que me faz espécie. «Deixa lá, é uma carne deliciosa. Olha, a carne que é fornecida ao hotel em que estás vem destes talhos», disse o tímido. Pelo sim pelo não, comi peixe até ao fim da estadia.

O que também se vê por todo o lado são moto-táxis. Como o próprio nome indica, são motos que servem de táxi. Estranha o conceito? Dois ou três moços com uma moto tipo Zundapp param numa esquina vestidos com um reluzente e sebento colete fluorescente, com as palavras «MOTO TAXI» escritas atrás. Quem precisa de boleia (as povoações na República Dominicana são todas longe umas das outras) paga, monta-se atrás na moto e vai à sua vida. O conceito é simpático e não é inédito. [o negócio que mais cresceu na cidade de Paris nos últimos três anos foi precisamente o do moto-táxi] Mas os moto-táxis dominicanos falham em alguns detalhes básicos: na maior parte das motos, só cabe o condutor, o pendura vai com o rabo num pedaço de chapa; a maior parte das motos não tem poisa-pés para o pendura, que vai com os pés no escape; a esmagadora maioria dos penduras apanha moto-táxi mesmo que esteja carregado com os sacos das compras ou outras porcarias; há motoristas de táxi que aceitam levar mais de uma pessoa; ninguém usa capacete, mesmo que as estradas tenham buracos e lombas que assustam qualquer jipe; e o mais assustador é o aspecto horrível dos motoristas, qualquer um deles digno de ser protagonista do «Machete».

A ilha de Saona não tem nada de especial. É uma ilha, pequena, cheia de palmeiras, areais e praias incríveis, pode atravessar-se de um lado ao outro a pé e mergulhar por todo o lado. Parece espectacular (e na verdade, até é um bocadinho), mas como esta existem 300 ilhas nas Caraíbas. Tem uma enorme vantagem, que é o facto de ter praias verdadeiramente sossegadas, sem colunas de som aos berros com música para turista, com muito menos haitianos que as outras e sem progresso aparente à vista. Estão registados 300 habitantes na ilha, mas por lá não pernoitam mais de vinte. E os que o fazem, são os pescadores. De todos os que lá dizem que vivem, nenhum é descendente dos colonizadores originais. E, para mim, o que a ilha tem, de facto, de especial, é a sua história.
A ilha chama-se «Saona» porque o Cristóvão Colombo, único navegador em toda a História a ter um nome com dois acentos gráficos, decidiu chamar-lhe assim no dia em que a descobriu, em Maio de 1494, andava ele a tentar descobrir a América pela segunda vez. O Cristóvão era um rapaz perturbado e bastante parvo que, para além de querer descobrir continentes em duplicado, andava a tentar pôr ovos de pé. Naquele dia, Colombo nomeou um amigo seu, Michele de Cuneo, o primeiro governador da ilha de Saona, dando origem ao primeiro «Job for the Boy» da História da Política. Michele de Cuneo era da Ligúria, na zona italiana da Cote D’Azur, mais precisamente de uma terra chamada Savona. Foi esse nome que foi atribuído à ilha: «Savona». Mais tarde, um nativo desdentado chamou-lhe «Sa’ona», e foi esse nome que perdurou no tempo. Durante séculos, ninguém quis saber da porcaria da ilha para nada. Só os piratas é que gostavam dela, porque ali podiam estabelecer um poiso enquanto atacavam embarcações que cruzavam o Caribe, mas nem eles podiam lá ficar por muito tempo, porque acabavam sempre por apanhar uma praga de cólera ou escorbuto e morriam todos de empreitada. Os únicos habitantes que perduraram ao longo do tempo foram os javalis, mas em toda a minha estadia em Saona não vi um único. E ainda bem, não fosse aparecer o anúncio idiota com o ainda mais idiota do Nuno Markl a fugir do javali.

No regresso, José quis mostrar-me as coisas mais típicas da República Dominicana. A «Mamajuana», uma aguardente manhosa feita com pedaços de madeira a marinar dentro de uma garrafa; os bolinhos fritos típicos; rolinhos de carne; rum meloso. Enfim, nada que se aproveite. Levou-me à cidade de Higüey, para ver a catedral de Altagracia, mas eu vi tanta barraca, tanta moto, tanto buraco, tanto dominicano e tanta carne pendurada que decidi cancelar o passeio seguinte a Santo Domingo, por respeito com as minhas entranhas. Fiz as malas para vir embora porque achava que já tinha visto tudo. Mas faltava o toque final: no aeroporto, o fiscal de segurança agarrou-me nas pilhas da máquina fotográfica e disse-me «o senhor não pode viajar com isto».

Perante tanto no puede e o olhar indiferente dos dois polícias que estavam mais atrás, as pilhas ficaram mesmo no caixote do lixo da sala de embarque. Cá em baixo, na sala de embarque propriamente dita, uma loja tinha sido assaltada e ainda havia cacos de vidro no chão para toda a gente se cortar à vontade. Lá fora, junto aos aviões e aos reservatórios de jet-fuel, grupos de pessoas fumavam sem qualquer restrição. No canto do free-shop estava um expositor com – nada menos do que – 86 pilhas embaladas e prontas a vender. Mas as minhas oito pilhas, recarregáveis, caras e mais viajadas do que eu próprio, tiveram que ficar no caixote do lixo. Deve ser uma tradição dominicana qualquer que eu não captei.
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2 comments:
Meu Deus que adoro por ser o nosso grandioso Criador,obrigado por nos da uma pessoa que nos pode tansmitir tudo o que sentimos mas não podemos expressar porque não nos Deste esse Don.Obrigado
O Don Juan?
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