O sol queima com intensidade; o pouco ar que corre é abafado; as senhoras turistas atropelam-se para irem apanhar um
pareo garrido e feio; os locais, de pele escura e suja e sebenta e cheiram mal, não nos deixam em paz a querer vender porcarias que não queremos comprar; não, não é a feira de Carcavelos num dia de Verão, é apenas uma singela praia na República Dominicana. Qualquer uma serve. Todas têm esta envolvência.
A linha das palmeiras define a fronteira entre o areal e o mar. Define, também, a linha entre chatear ou não chatear os turistas: entre a primeira fila de espreguiçadeiras e a dócil rebentação do mar do Caribe, naquela tira pequena de areia molhada, circulam pelotões inteiros de haitianos a tentar vender de tudo, desde o sol à lua, passando pela mãe, as irmãs, o dente de ouro de uma tia, uma ilha qualquer no Pacífico, um camião roubado à ONU, duas vacas sagradas, uma avestruz do Paquistão, um Cadillac que pertenceu a J.F. Keneddy mas só depois de morto, um vestido que pertenceu a Lady Gaga quando ainda era homem e uma galinha que é prima do coelho da Páscoa e põe ovos de chocolate. Lá pelo meio até dizem a verdade, que têm bonito artesanato para vender. O problema é que, como eles não podem, fisicamente, vender nada na praia, têm que convencer os turistas a ir visitar as suas barracas… perdão, superfícies comerciais, aglomeradas naqueles 170 centímetros de praia que não pertencem aos hotéis. Os estrangeiros que acabaram de chegar vão atrás deles, cheios de boa vontade, perdem 20 minutos, gastam 70 dólares e voltam com uma máscara de bambu que se parte toda, um berimbau que não toca, um íman que não agarra ao frigorífico e um
pareo que debota assim que se lava.
Felizmente, tudo isto é relativamente pacífico e, a partir do momento em que aprendemos a ignorar os haitianos, a estadia na praia é excelente. Mas a sensação do sossego não é imediata porque, convenhamos, não é todos os dias que se deita a toalha na areia de uma praia com um polícia em cada palmeira. Primeiro vem a desconfiança de que algo se passa ali, depois vem a aprendizagem: esperamos até que haja uma brecha entre os grupos de haitianos que andam para trás e para a frente e corremos para o mar. Eles não vão lá dentro, nós só saímos de lá quando eles não estão na areia molhada. E assim se vive calmamente, com a certeza de que os polícias estão na praia para nos proteger e não para nos multar por termos estacionado mal a espreguiçadeira. Até havia um polícia que estava na praia especificamente para avisar os turistas que havia uma palmeira em risco de cair.
«É bom que eles mostrem a sua presença na praia, porque impõe respeito», disse-me Angel, um autóctone do qual não me lembro do apelido, e que por isso a partir de agora passa a ser referido como Angel My Friend:
«Isto aqui já esteve muito pior. Depois do terremoto [no Haiti], eles [os haitianos] vieram para este lado [da ilha] e começaram a roubar-nos [aos dominicanos] quase tudo. Começaram a vender nas praias, a aborrecer os turistas, a praticar furtos, de maneira que as cadeias de hotéis começaram a pagar um suplemento especial à polícia para vigiarem as praias». Criou-se uma espécie de convivência tolerante, mas apenas para quem tolera hordas de haitianos a sugar recursos como uma sanguessuga no braço de um americano dentro de uma casa de hambúrgueres.
o
«Eh, pá! Este blogue é cruel como o caraças, não tem pena dos haitianos que ficaram sem nada desde o terramoto e até têm cólera e mais o raio que parta…»
Bom, se você, que está a tentar ler isto, leu a frase anterior e ela fez algum sentido dentro da sua cabeça, se calhar é melhor que eu lhe explique algumas coisas primeiro. Pode ser?
oPonto um: os haitianos não têm pena deles próprios.
«São seres revoltados por natureza, até os que têm uma vida aceitável e estão integrados no nosso país, com a sua casa, com a sua família, com o seu sustento, até esses são revoltados e conflituosos». Quem o diz é o Angel My Friend, de quem não tenho motivos para achar que o diz da boca para fora. O Angel é um rapaz dominicano educado, com estudos, com frequência em ensino qualificado universitário, com a ambição de se especializar em relações internacionais num intercâmbio qualquer na Europa. Nem sequer é como a maior parte dos dominicanos, que sonha um dia viver nos Estados Unidos, embora saiba perfeitamente que nunca vai pôr um pé fora daquela ilha.
«Gostava de ter uma carreira e ficar lá por fora, ter uma família», diz, sem saber que na Europa as pessoas vivem encavalitadas umas nas outras, faz um frio de rachar, chove e neva, é tudo caro e ninguém vive contente.
«A ambição do dominicano médio é ir para Miami. A ambição de um dominicano pobre é um dia poder fazer uma viagem fora do país. A ambição do haitiano é viver deste lado da ilha e armar zaragatas com toda a gente», acrescenta. Estima-se (não eu, que nunca soube estimar nada) que haja uns dois milhões de haitianos a viver na metade direita da ilha, que, para quem não sabe, se chama República Dominicana. Desses dois milhões, três estão ilegais. Mas são contabilizados para os quase dez milhões de habitantes do território.
«Eles ficam com os cuidados básicos de saúde, com toda a assistência social, com tudo o que é dinheiro do governo para ajuda ao povo», diz o Angel My Friend, sem raiva, mas com o ressentimento natural de quem percebe que, para estar doente, tem que ter um seguro de saúde pago pelo patrão. A mãe e o pai, diz, não têm. Se ficam doentes, vão para a mesma fila dos haitianos. E ele não está a exagerar. Uma turista do hotel teve gripe, foi ao centro de saúde do hotel e teve que accionar o seu seguro de viagem, caso contrário a médica não a tratava. Uma embalagem com três cápsulas anti-gripais custou 23 dólares. O descongestionador nasal custou 30 dólares. A consulta custou 97 dólares mais 20 dólares da chamada telefónica para o seguro, que pagou tudo. A turista, no dia a seguir, já andava aos saltos dentro de água.
«Se fosse um haitiano, ia para a fila das urgências até ser atendido. Mesmo que, quando fosse atendido, já nem sequer estivesse doente», sublinha o Angel My Friend.
Ponto dois: os haitianos não servem para nada e só estragam. Mas espalham doenças ou isso? «Não, nada disso», esclarece o Angel: «eles nem gostam de se misturar com os dominicanos. Mas eles arruínam-nos o país. O governo dominicano até lhes paga para determinadas coisas, e eles fazem tudo para estragar». Não fiquei muito convencido e pedi-lhe para detalhar. Então fiquei a saber que o governo dominicano paga, vamos imaginar, 350 pesos por semana a um haitiano para ele trabalhar nos sectores em que os dominicanos se recusam a trabalhar a 500 pesos por semana. «Eles vêm, fazem o que lhes pagam para fazer, mas de caminho destroem a habitação social em que os põem a dormir, cospem no chão do autocarro que os transporta, estragam comida de propósito, são eternamente revoltados», diz o Angel. [Em defesa dos haitianos, é importante dizer que aquilo a que o rapaz se refere como ‘habitação social’ qualifica-se como ‘barraca’ em qualquer sítio da Europa] O principal motivo pelo qual o governo dominicano contrata haitianos é porque nenhum dominicano quer esse trabalho de baixa qualificação que é cortar cana-de-açúcar. É por isso que os haitianos recebem uma licença especial de permanência durante o período de contratação, que pode ir de oito a vinte e quatro semanas, mas nunca é cumprido para lá das doze. «O que acontece», explica o Angel My Friend, «é que eles trabalham semanas suficientes para ganharem algum dinheiro e, assim que têm o suficiente, voltam para o Haiti, onde eles e a família se podem embebedar como lordes durante três meses, porque o dinheiro que levam daqui, lá, é uma fortuna». Mas isso são todos? Tem que haver excepções. «E há. Há os que trabalham até terem dinheiro suficiente para construírem uma barraca e se sustentarem por cá».
Ponto três: há quem diga que os haitianos só tiveram o que mereciam e, apesar da citação ser parva, nem sou eu que a digo. O Angel explicou-me que há uma corrente de opinião, dentro do próprio Haiti, que segue a ideia de que o terramoto não teria sido tão violento se o Haiti tivesse alguma coisa para o amortecer.
«Já viste alguma imagem de satélite desta ilha, para veres a diferença entre o território do Haiti e o da República Dominicana?», perguntou-me. Ó Angel, My Friend, eu nem sei o que é um satélite, quanto mais alguma vez ter visto a imagem de um.
«O lado do Haiti não tem nada, não tem árvores, sequer. Eles cortaram árvores durante anos e anos para fazerem esculturas em madeira, para produzirem carvão e lenha e madeira para tudo e mais alguma coisa. Com isso, tornaram-se nos maiores exportadores de artesanato em madeira. Ao ponto de andarem a exportar elefantes de madeira em tamanho real». Para isso, de facto, é precisa muita madeira, de tal modo que, quando o terramoto veio, chocou de frente com um pedaço de ilha cheio de nada, só com barracas frágeis, sem relevo natural para absorver o safanão. Eu nem sequer sei se esta teoria é válida e faz algum sentido, mas, sinceramente, serve-me bem como explicação para o desastre. E, sinceramente também, estou sem paciência para investigar se é verdade. Estou com mais vontade de ir conhecer este lugar.
Preciso de trocar de cicerone e o Angel indicou-me um rapaz que sabe tudo sobre a ilha e fala tudo, espanhol, inglês, francês, alemão, italiano, caribenho e depressa. Eu, infelizmente, não percebo patavina de nada, só o entendo por gestos. Chama-se José [diz-se «Ró-Cé»]. José quê? Não faço a mínima ideia, porque o abecedário gestual é complicado de compreender, mas a partir de agora chamo-lhe José, O Tímido. Porque tímido é tudo o que ele não é. No início do périplo pela ilha, José disse tanta coisa que eu quase não consegui dispersar a atenção para olhar pela janela e ver a paisagem. Mas lá fiquei a saber que os talhos dominicanos penduram a carne cá fora. Para quê?
«Ninguém aqui tem dinheiro para pagar grandes arcas frigoríficas ou a electricidade que ela custa, de maneira que a carne é posta a secar ao ar [e às moscas, acrescento eu], depois de ser devidamente salgada para se conservar como deve ser». A parte de não quererem gastar electricidade eu até percebo, porque assim os dominicanos preferem guardar a luz para ouvir os discos do Juan Luis Guerra e jogar dominó noite dentro. Mas a parte de deixarem a carne na rua… porque ela se conserva melhor, é que me faz espécie.
«Deixa lá, é uma carne deliciosa. Olha, a carne que é fornecida ao hotel em que estás vem destes talhos», disse o tímido. Pelo sim pelo não, comi peixe até ao fim da estadia.
A propósito do dominó, fiquei a saber que esse é o desporto número três dos dominicanos. A sério? Então mas e o futebol, esse desporto tão universal?, perguntei eu.
«Ah, aqui ninguém liga muito a isso. Aqui é Baseball». Faz sentido. Os dominicanos param ao sábado para ver os jogos do Baseball americano (onde jogam vários compatriotas; e até jogam bem, pelos vistos; apesar de, recentemente, ter havido um que levou com uma bola e ficou sem um olho). Mas também param às quintas para ver lutas de galos e em qualquer altura para jogar dominó.
«Para o resto, estão-se a borrifar», diz José. Mas luta de galos nem sequer é um desporto!, noto, com indignação ignóbil.
«Claro que é. Há criadores de galos que se suicidam por causa de um mau resultado de um capão seu. E correm ao lado dos galos, preparam-nos, lutam com eles. É desporto nacional». Sim, sim. Desporto nacional, pois sim. Na ala de doentes mentais, talvez. Não estivesse ela cheia de haitianos. A verdade é que se percorrem quilómetros e quilómetros sem se avistar um único campo de futebol, mas vê-se uma meia-dúzia de campos de Baseball e dominicanos por todo o lado a jogar dominó.
O que também se vê por todo o lado são moto-táxis. Como o próprio nome indica, são motos que servem de táxi. Estranha o conceito? Dois ou três moços com uma moto tipo Zundapp param numa esquina vestidos com um reluzente e sebento colete fluorescente, com as palavras «MOTO TAXI» escritas atrás. Quem precisa de boleia (as povoações na República Dominicana são todas longe umas das outras) paga, monta-se atrás na moto e vai à sua vida. O conceito é simpático e não é inédito. [o negócio que mais cresceu na cidade de Paris nos últimos três anos foi precisamente o do moto-táxi] Mas os moto-táxis dominicanos falham em alguns detalhes básicos: na maior parte das motos, só cabe o condutor, o pendura vai com o rabo num pedaço de chapa; a maior parte das motos não tem poisa-pés para o pendura, que vai com os pés no escape; a esmagadora maioria dos penduras apanha moto-táxi mesmo que esteja carregado com os sacos das compras ou outras porcarias; há motoristas de táxi que aceitam levar mais de uma pessoa; ninguém usa capacete, mesmo que as estradas tenham buracos e lombas que assustam qualquer jipe; e o mais assustador é o aspecto horrível dos motoristas, qualquer um deles digno de ser protagonista do «Machete».
A República Dominicana é famosa pelo turismo e não admira, porque as praias são óptimas e a água é bestial. O Mar do Caribe é tão revolto e violento como, digamos, a Lagoa de Albufeira (que, por acaso, não fica em Albufeira, e sim no Meco) antes da troca da maré. A Lagoa mesmo, não a parte da praia de mar. Ou seja, é calminho, calminho, calminho. Só que a água do Mar do Caribe tem uma temperatura mais elevada do que muitas sopas que eu já aqueci no micro-ondas. E o sol torra mesmo. Vi um inglês que, entre descer do barco e fazer aqueles cinco metros a pé até à praia, passou de branquinho como o leite a vermelho como um lagostim. Na viagem que fiz com José, O Tímido, fui a Bayahibe apanhar uma lancha rápida para uma ilha qualquer mais a sul que ele me descreveu como sendo espectacular. De caminho, por cima de águas transparentes em que até se conseguem ver as estrelas-do-mar pousadas no fundo, foi-me dizendo:
«sabes, em tempos, nestas águas e nesta ilha que te vou mostrar, foi aqui que filmaram as cenas do filme ‘A lagoa azul’ com a Brooke Shields». Ó Tímido, estás a gozar-me, não estás? Esse filme foi filmado numa ilha qualquer das Fiji e em Vanuatu! Eu sei isso porque eu vivia em Vanuatu nessa altura! Eu vi as filmagens da minha cama de rede!…
humpf!, adiante. Chegámos à tal ilha, que se chama Saona. E… A-HA!!... isto sim, é famoso! A célebre palmeira inclinada onde foram feitos os anúncios da Bounty! Isso não me contaste tu, ó Zé cicerone de trazer por casa.
A ilha de Saona não tem nada de especial. É uma ilha, pequena, cheia de palmeiras, areais e praias incríveis, pode atravessar-se de um lado ao outro a pé e mergulhar por todo o lado. Parece espectacular (e na verdade, até é um bocadinho), mas como esta existem 300 ilhas nas Caraíbas. Tem uma enorme vantagem, que é o facto de ter praias verdadeiramente sossegadas, sem colunas de som aos berros com música para turista, com muito menos haitianos que as outras e sem progresso aparente à vista. Estão registados 300 habitantes na ilha, mas por lá não pernoitam mais de vinte. E os que o fazem, são os pescadores. De todos os que lá dizem que vivem, nenhum é descendente dos colonizadores originais. E, para mim, o que a ilha tem, de facto, de especial, é a sua história.
A ilha chama-se «Saona» porque o Cristóvão Colombo, único navegador em toda a História a ter um nome com dois acentos gráficos, decidiu chamar-lhe assim no dia em que a descobriu, em Maio de 1494, andava ele a tentar descobrir a América pela segunda vez. O Cristóvão era um rapaz perturbado e bastante parvo que, para além de querer descobrir continentes em duplicado, andava a tentar pôr ovos de pé. Naquele dia, Colombo nomeou um amigo seu, Michele de Cuneo, o primeiro governador da ilha de Saona, dando origem ao primeiro «Job for the Boy» da História da Política. Michele de Cuneo era da Ligúria, na zona italiana da Cote D’Azur, mais precisamente de uma terra chamada Savona. Foi esse nome que foi atribuído à ilha: «Savona». Mais tarde, um nativo desdentado chamou-lhe «Sa’ona», e foi esse nome que perdurou no tempo. Durante séculos, ninguém quis saber da porcaria da ilha para nada. Só os piratas é que gostavam dela, porque ali podiam estabelecer um poiso enquanto atacavam embarcações que cruzavam o Caribe, mas nem eles podiam lá ficar por muito tempo, porque acabavam sempre por apanhar uma praga de cólera ou escorbuto e morriam todos de empreitada. Os únicos habitantes que perduraram ao longo do tempo foram os javalis, mas em toda a minha estadia em Saona não vi um único. E ainda bem, não fosse aparecer o anúncio idiota com o ainda mais idiota do Nuno Markl a fugir do javali.
A ilha de Saona só se tornou minimamente interessante em 1944, andava a Europa às turras por causa de um senhor baixinho de bigode e andavam os americanos a tentar defender-se daquilo que eventualmente podia atravessar o Atlântico para lhes vir dar um grande tau-tau. Pudera, estavam escaldados depois da cagada que fizeram no Hawaii, quando um punhado de japoneses irrequietos lhes destruiu o orgulho e parte da frota do Pacífico, num ataque surpresa que só não foi remédio santo porque o almirante da empreitada nipónica achou que era hora de ir tratar dos bonsais e mandou cancelar a terceira vaga do ataque a Pearl Harbor. Durante uns anos, os Estados Unidos andaram a tentar «comprar» ilhas estrategicamente posicionadas à porta do Atlântico. Por «comprar», entenda-se «ocupar», porque há muito tempo que os américas têm a mania que são donos do mundo e então ocupam tudo o que acham que lhes faz falta. Ou acham que aquele pedacinho de Cuba lhes foi oferecido pelo Fidel?
[bom, por acaso a baía de Guantanamo até foi uma prenda de Cuba para os americanos no início do século, mediante o pagamento de uma mensalidade de cinco mil dólares por ano; o Fidel tentou várias vezes desfazer a burrada do seu antecessor, mas em vão] No início de 1944, os americanos tinham ocupado a ilha de La Mona, que ficava ali algures entre a Jamaica, Porto Rico e a Nazaré. Para evitar que fizessem o mesmo com Saona, o ditador Trujillo Molina mandou colonizar a ilha (à altura, deserta) por intermédio de 12 famílias escolhidas a dedo por ele (apontou para a lista telefónica e escolheu).
«Foi uma forma educada de dizer aos Estados Unidos que não sem dizer que não», diz José, O Tímido:
«ninguém dizia que não aos americanos, nem mesmo um ditadorzinho armado em mau como o Trujillo. Dessa maneira disse-lhe que não podia dar-lhes a ilha porque havia gente que vivia lá». Durante anos e anos e anos a ilha de Saona foi habitada por gente maluca, em resultado da consanguinidade que havia por lá, uma vez que eram todos filhos e irmãos e primos uns dos outros e era uma rebaldaria pegada.
No regresso, José quis mostrar-me as coisas mais típicas da República Dominicana. A «Mamajuana», uma aguardente manhosa feita com pedaços de madeira a marinar dentro de uma garrafa; os bolinhos fritos típicos; rolinhos de carne; rum meloso. Enfim, nada que se aproveite. Levou-me à cidade de Higüey, para ver a catedral de Altagracia, mas eu vi tanta barraca, tanta moto, tanto buraco, tanto dominicano e tanta carne pendurada que decidi cancelar o passeio seguinte a Santo Domingo, por respeito com as minhas entranhas. Fiz as malas para vir embora porque achava que já tinha visto tudo. Mas faltava o toque final: no aeroporto, o fiscal de segurança agarrou-me nas pilhas da máquina fotográfica e disse-me «o senhor não pode viajar com isto».
Bom… vamos lá com calma. Primeiro que tudo, quem é esse do «senhor»? Quer ofender-me? E depois, não posso viajar com as pilhas porquê?
«Ah, porque isto dá para fazer bombas perigosíssimas», disse o homem, por debaixo do seu aparadíssimo e ridículo bigode. Bombas?? Mais quais bombas? Bombas de mau cheiro? Bombas químicas com os dois mililitros de líquido químico que existe dentro delas? E faço-as explodir com o quê? Com a força da mente?
«No puede, no puede, no puede»… Mas no puede porquê, ó Juan Luis Guerra de farda?! Já viajei para todo o lado com a porcaria das pilhas. São pilhas recarregáveis, que os idiotas dos fabricantes de baterias resolveram fazer para proteger o ambiente e para não obrigar o Planeta a ter que reciclar milhões de pilhas gastas todos os anos. São mais caras que as outras, porque são recarregáveis. E por acaso até estão… DESCARREGADAS! Percebes, ó artista!
«No puede, no puede».
Perante tanto no puede e o olhar indiferente dos dois polícias que estavam mais atrás, as pilhas ficaram mesmo no caixote do lixo da sala de embarque. Cá em baixo, na sala de embarque propriamente dita, uma loja tinha sido assaltada e ainda havia cacos de vidro no chão para toda a gente se cortar à vontade. Lá fora, junto aos aviões e aos reservatórios de jet-fuel, grupos de pessoas fumavam sem qualquer restrição. No canto do free-shop estava um expositor com – nada menos do que – 86 pilhas embaladas e prontas a vender. Mas as minhas oito pilhas, recarregáveis, caras e mais viajadas do que eu próprio, tiveram que ficar no caixote do lixo. Deve ser uma tradição dominicana qualquer que eu não captei.
o